por João César das Neves
A Quaresma é a maior provocação que a Igreja católica faz à cultura
contemporânea. É verdade que a defesa da virgindade e da temperança, a
insistência na humildade e caridade, a manifestação da hierarquia e obediência
são traços católicos incompreensíveis hoje em dia, até por muitos cristãos. Mas
o jejum, oração e esmola da Quaresma, além de incorporarem tudo isso, têm uma
serenidade e inevitabilidade, uma presença e dignidade ainda mais chocantes. A
era que gosta de celebrar o Natal e transformou a festa de Todos-os-Santos no Halloween, não sabe o que fazer da
Quaresma.
É verdade que esta época também não entende a Páscoa. Ao Natal conseguiu
reduzi-lo a cromo colorido, festa da família e solidariedade, mas a Páscoa
simplesmente desapareceu. O único rasto que permanece é o spring break, que as legendas dos filmes insistem em chamar «férias
da Páscoa» e que constitui uma espécie de visita de estudo, mas sem estudo, só
com festas e bebedeiras. O imperador Adriano construiu um templo de Vénus em
cima do Santo Sepulcro. A cultura moderna põe uma orgia sobre a Páscoa.
Além de a ter eliminado do calendário, o mundo não entende a lógica da
Páscoa. Como classificou Jesus entre os mestres espirituais, perdeu todo o
sentido da Paixão. É verdade que ainda lhe aprecia o dramatismo cinematográfico
e valoriza a nobreza do sacrifício inocente. Mas, considerando-o ao nível de
Spartacus ou Sócrates, não percebe porque insistimos em celebrá-lo todos os
anos. Acima de tudo não compreende a nossa sofreguidão com a Páscoa, como se
fôssemos esfomeados diante de um banquete. Sem entender que é disso mesmo que
se trata.
Mas, mesmo se entendesse a Páscoa, a mentalidade contemporânea não
conseguiria aceitar a Quaresma. Se pudesse admitir que a morte e ressurreição
de Cristo nos abriu as portas do Céu, não iria compreender quarenta dias de
penitência para poder entrar nas portas já abertas. Porque mesmo que aceitasse
a divindade de Cristo, nunca conseguiria vislumbrar a humanidade de Cristo.
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